sábado, 22 de maio de 2010

Medicalização

O Chapeleiro Maluco de "Alice no País das Maravilhas" não entende porque seu relógio quebrado não voltou a funcionar depois de tê-lo colocado na manteiga. Afinal, diz ele, "era a melhor manteiga!" Um absurdo tão desconcertante quanto o proposto por Lewis Carroll está ocorrendo com a expansão da medicalização. Por medicalização, entenda-se a utilização do modelo biomédico, sustentado no método clínico, para abordar problemas de ordem socio-econômico-cultural. Aplicado à compreensão do comportamento humano, ele conduz a uma visão individualizada e biologizante, tão boa quanto manteiga para consertar relógios.

"A medicina é uma ciência normatizadora, ela diz o que é bom e o que é ruim, da mesma forma como a Psicologia ou a Educação faz", diz Maria Aparecida Affonso Moysés, Professora Titular de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. "Ela apresenta, contudo, uma particularidade, apontada por Foucault, que a distingue de outras ciências: a de ter construído para si o seu próprio estatuto científico, baseando-se em duas promessas: a de ser capaz de resolver todos os problemas e a de se tornar desnecessária, uma vez resolvidos esses problemas". São promessas irrealizáveis, diz a professora, mas que, devido aos sucessos da ciência médica, deram ao método clínico um status especial e o transformaram no padrão para as demais ciências.
Como a medicalização se estende para outros campos? "Por meio da própria prática médica", responde Cida Moysés. "Quando estendo o acesso aos serviços médicos, estou fazendo uma extensão da normatividade médica. Em uma campanha de imunização, eu não levo só a vacina; eu levo a normatividade junto".

As conseqüências desse fenômeno podem ser facilmente percebidas. De acordo com a Doutora em Psicologia e Pesquisadora Científica do Instituto de Saúde de São Paulo e integrante do Núcleo de Saúde do CRP SP, Maria de Lima Salum e Morais, o olhar medicalizante se estendeu dos consultórios para a vida de tal forma que, atos cotidianos, como comer, andar ou ter relacionamentos amorosos, acabaram freqüentemente enquadrados no plano biológico da saúde. "A vida tem se tornado cheia de regras, com pouco lugar para a espontaneidade, levando as pessoas a agirem dentro de determinados padrões recomendados para o não-adoecimento".

Isso não significa que não se devam estender serviços médicos ou negar a efetividade do método clínico em sua própria área. Ainda assim, é preciso cuidado. Como observa Maria Salum, antidepressivos podem ajudar pacientes com diagnóstico de depressão, mas utilizá-los de forma exclusiva e sem uma compreensão mais ampla das circunstâncias que envolvem a pessoa é reduzir o sofrimento psíquico a um fenômeno individual e contribuir para que ele se torne crônico.

Analgésico social - Tudo isso, contudo, não basta para explicar a expansão da medicalização. "O método clínico cresce porque acalma conflitos", diz Cida Moysés. "Na verdade, a sociedade pede isso. Quando se está diante de uma criança com uma dificuldade de aprendizado, por exemplo, poder atribuir esse fato a uma doença, isenta de responsabilidades os pais, a escola e os governos", diz. Maria Salum acrescenta que, em uma sociedade que se habituou a soluções imediatistas, a idéia de escapar do sofrimento psíquico recorrendo a nada mais que um comprimido é tentadora e reforçada de várias formas.

Além dessas constatações de caráter mais amplo, Maria Salum cita três fatores decisivos para que a medicalização se expanda de forma continuada: 1) O modelo hegemônico de atenção à saúde centrado no sintoma, na doença desconectada da integralidade das pessoas; 2) O poder econômico das indústrias farmacêutica, cosmética e alimentícia, que faz com que a saúde seja tratada como mercadoria - o próprio medicamento sendo uma mercadoria especial uma vez que, respaldado pelo conhecimento científico, não é questionado; 3) A dificuldade do profissional de saúde em abrir mão do poder de medicar que lhe confere seu presumido saber técnico, fazendo com que medidas de prevenção e promoção da saúde, que levariam a relações mais horizontais, nas quais o usuário se co-responsabilizaria por sua saúde, sejam deixadas em segundo plano.

Várias ações têm sido propostas para combater a medicalização (leia boxe). Para os profissionais de psicologia, talvez o mais importante nesse combate seja repensar a questão da formação acadêmica. Ou seja, fazer com que os novos profissionais sejam formados dentro dessa perspectiva interdisciplinar, de trabalho em equipe, vivenciando desde o início da própria formação a realidade da população. "Já existem movimentos nesse sentido em algumas instituições acadêmicas", diz Maria Salum. Mas ainda é necessário que essas iniciativas ganhem uma abrangência maior. Quanto mais a sociedade tomar conhecimento de que há alternativas melhores ao seu alcance, menores serão as chances de comprar a manteiga rançosa da medicalização.

QUEM ESTÁ DOENTE? O ALUNO OU A ESCOLA?

As tentativas de lidar com casos de fracasso escolar como se eles fossem uma patologia são um exemplo de medicalização. Embora venha ganhando uma nova dimensão nos dias de hoje, o problema tem raízes bem antigas. Segundo Cida Moysés, a Saúde Escolar - cujo objetivo explícito era diminuir as taxas de reprovação - surgiu no Brasil na virada para o século XX, quando o número de escolas públicas era muito pequeno nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro.

"O que a análise dos documentos sugere é que a medicalização se origina da ação de "especialistas" da área médica, que apontam a existência de "crianças-problema" e se colocam como profissionais detentores do conhecimento científico necessário para a solução", diz. É este mecanismo de construção da demanda que constitui, segundo ela, o aspecto essencial da medicalização. "Com o fortalecimento do estatuto de ciência moderna da Medicina, a biologização de questões sociais passou a ser a resposta rotineira da sociedade para os conflitos sociais".
Nos casos de fracasso escolar, é comum que o aluno seja encaminhado a um psicólogo que acaba tratando o problema sem levar em conta o contexto no qual a dificuldade se apresenta.
"O resultado desse tipo de abordagem é que o aluno acaba sendo o único responsável por toda a situação", diz a psicóloga e especialista em educação, Beatriz de Paula Souza. "Não há como entender uma criança com queixa escolar sem ver o que está acontecendo na escola", diz.

A questão, segundo Beatriz, é que o modelo de escola tradicional é anacrônico. "A escola não é ahistórica. Ela está apoiada sobre pressupostos que recuam ao Fordismo e à Revolução Francesa". São os alunos que precisam se ajustar à sua estrutura rígida, sob pena de serem excluídos". As conseqüências são conhecidas. Como observa Beatriz, "as avaliações de desempenho de alunos do Ensino Fundamental no Brasil são tão ruins - conforme atestado pelos resultados do último SARESP (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) - que é impossível imaginar que a responsabilidade seja dos alunos".

A PATOLOGIZAÇÃO DE ADOLESCENTES AUTORES DE ATO INFRACIONAL
Não é apenas na Educação que a medicalização acaba servindo à solução de conflitos sociais. Na área da Criança e do Adolescente, esse mesmo movimento, ao qual também se pode designar como psiquiatrização, pode ser observado em iniciativas visando patologizar e criminalizar adolescentes autores de ato infracional.

"Adolescentes que cumprem medidas socioeducativas têm sido encaminhados de forma crescente para perícias cujo objetivo é aferir a sua periculosidade", diz Maria Cristina Vicentin, professora do pós-graduação em Psicologia Social da PUC-SP. Segundo ela, também é crescente o número de internações psiquiátricas de adolescentes por mandato judicial. "Recentemente a noção de periculosidade vem sendo usada cada vez mais difusamente, cada vez mais subordinada às exigências de "defesa social", vindo a se referir a tudo o que resiste ou escapa à rede das agências de bem-estar ou de controle social. Quando o abandono, a vulnerabilidade se apresentam como um problema "ingovernável", assumem certamente a forma de distúrbio ou de perigo, tendendo a ingressar cada vez mais no circuito da psiquiatrização ou da judicialização", afirma.

Isso não significa, segundo ela, que a complexidade das questões que afetam hoje a juventude possa prescindir das proposições e implementação de ações no campo da saúde mental. Tampouco se trata de negar a existência da demanda social quanto às turbulências e conflitos na relação com seus jovens. "Quando formulamos a idéia de que estamos frente à uma psiquiatrização estigmatizante é no sentido de que esta pode encobrir ou desconsiderar as múltiplas causalidades em jogo na deriva infracional, impedindo a leitura dos fenômenos sociais de exclusão, de vulnerabilidade social e subjetiva que lhe são também determinantes". Além disso, diz Maria Cristina, a postulação do sujeito como portador de 'transtorno de personalidade', 'quase incurável', dificulta que ele se reconheça com suas determinações psíquicas e sócio-históricas e impede que ele faça laço social, que supere as circunstâncias em que está colocado.

É contra essa situação que a ANCED - Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente e o Conselho Federal de Psicologia se posicionaram em documento conjunto. Entre outros aspectos, o manifesto ressalta a importância de se rever o papel dos atores de saúde e a necessidade de trabalhar para mudar a cultura de exclusão existente na sociedade.


SETE FORMAS DE COMBATER A MEDICALIZAÇÃO

Algumas propostas já estão consolidadas entre os profissionais que buscam meios de enfrentar a medicalização e os seus problemas. O quadro a seguir, mostra sete delas. Confira:

. Atuar em equipes multiprofissionais e interdisciplinares, utilizando conhecimentos das ciências humanas
- a própria Psicologia, a Saúde Coletiva, a Sociologia, a Antropologia, as Ciências Ambientais e Políticas - para orientar desde a pesquisa até ações profissionais e práticas institucionais;

. Fugir do modelo médico hegemônico e passar a estabelecer relações mais próximas com as pessoas, reconhecendo a importância do vínculo entre profissional de saúde e usuário;

. Realizar ações e intervenções fora do consultório, configurando relações com a comunidade, associações e outras instituições - como as de assistência social, justiça e educação -, visando ao diagnóstico precoce, à prevenção de doenças e à promoção da saúde;

. Ver, compreender e tratar o ser humano para além de seu corpo, incluindo suas dimensões psicológica, social e cultural;

. Respeitar a pessoa e o conhecimento dos usuários em relação ao próprio corpo e à própria saúde, conscientizando-se das conseqüências do poder atribuído ao saber técnico e tendo sempre presente suas limitações;


FONTE: http://www.crpsp.org.br/crp/midia/jornal_crp/155/frames/fr_medicalizacao.aspx

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